Filho e cachorro com ossos à mostra, revirando lixo. Choro de
fome. Peito seco, sem leite. Magreza enrugada, com olhos fundos. Miséria sem
esperança...Crianças e guaipecas famintos disputando restos de comida podre.
Lixão fedendo no sol quente. Disenteria solta, feito torneira estragada... Vida
sem vida, lixão do Rio de Janeiro, 1990; mulheres com lenço sujo na cabeça e
pés no chão. Suor, piolho e sarna disputando espaço no fedor do corpo cansado. Mundo
sem bandeira, nem cores. Se existisse, seria trapo, comida pra bicho ou tapava
corpo pelado...
Do outro lado do nada, tudo. Muito fácil, com restos de
comida jogados no lixo quase limpo. Outro mundo, sem fome. Sobra de pão,
diferente, colorido, cheiroso. Gente com roupas de todas cores, imitando flor. Mulheres
com caracol de pedras no pescoço e braços. Couro de animal bem tratado e
curtido feito bolsas, igual ao que cobriam os pés.
Nesta época, quase fim do século passado, poucos se
preocupavam com os diferentes mundos paralelos, no mesmo Brasil. A antiga promessa
de 1889 da proclamada república brasileira pra corrigir as diferenças sociais,
a miséria, a fome, não tinha sido cumprida.
Prometeu-se na campanha pela República, um fim das cópias de
extravagâncias europeias em Petrópolis, cujo nome homenageava o Imperador.
Analfabetismo, distribuição de terra e renda seriam atendidos no novo modelo de
governo que acabava com a monarquia. Fim também de condes, barões, marqueses, reverências
e privilégios.
Porém, pouco mais de cem anos e tudo igual na utopia republicana.
A fome se multiplicava em terras improdutivas; coronéis do açúcar e café só
trocaram de nomes. Miséria continua.
Um século do novo regime se passou com promessas não
cumpridas. Em 1990, uma multidão no Rio, com Betinho à frente, criava a Ação e
Cidadania contra a Fome, Miséria e pela Vida. Mais um nome perdido ou mais
promessas?
Traços de doença crônica estampados, Betinho ou Herbert José de
Sousa, com ficha corrida contra a ditadura brasileira, andou pelo mundo no
exílio; reforçou, porém, conceitos de democracia, incubando uma criação de
movimentos pelos excluídos.
Embrião de esperança social contra a fome se espraiava, subia
morros, descia ladeiras, corria junto a esgoto a céu aberto, alcançava a região
da seca nordestina...Menos fome, mais respeito. Esperança pro filho franzino e
ranhento; quem sabe, escola pro outro, desdentado...
Betinho integrou forças políticas, mas a luta pelo social
deixou a grande marca. Das ideias nasceram projetos, realizações concretas. A miséria
não acabou, mas diminuiu. Encontrou
solidariedade em cartões assistenciais de sucessivos governos.
Entretanto abusos populistas recentes, com modelos de
assistência vale tudo em troca de votos, deturparam a inspiração de Betinho.
Mesmo assim, a boa intenção criativa foi válida.
Porém, além do combate à fome, democracia e cidadania têm
muito espaço a ser conquistado “nesta nova República pós 1988”. O caminho
correto é a obediência aos direitos constitucionais: Saúde e Educação. Grandes
nações como Coréia do Sul, Japão e Alemanha, por exemplo, encontraram há muito
tempo a rota certa.
Panelas se encheram mais, barrigas também. Hoje, menos
desnutrição e lixões. Valeu o trabalho de Betinho. Franzinos, ranhentos e
desdentados, porém, merecem ainda mais atenção. Comida, Escola e Saúde é o trio
de maior prioridade que o lema positivista de Auguste Comte, Ordem e Progresso,
plantado no verde louro e no amarelo ictérico de nossa bandeira “republicana”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário