terça-feira, 3 de setembro de 2013

Dia da Consciência Negra


Mortos-vivos aglomerados na embarcação-presídio. Fome, sede, dor muda, o mar sepultava os abatidos pelas doenças. Obrigações severas matavam os enfraquecidos. Os mais fortes, quase cadáveres, resistiam sem queixas... Corria o ano de 1549. Os primeiros navios da vergonha chegavam ao solo brasileiro... Ondas engolindo sofrimento, submissão cega, aceitação imposta, rebeldia oprimida...
 A rica colônia seduzia o Velho Mundo. “Em se plantando nela tudo dá”, na carta de Pero Vaz de Caminha, os primeiros escritos sobre a abençoada terra descoberta. Café, cana de açúcar, algodão, frutas exóticas, pau brasil, ouro, enfim tudo à vontade.
 Mas precisava de muita gente para explorar o que pudesse e sem custos. Os índios, ah os índios! Nunca! Mesmo os dóceis, que viviam da caça e pesca insolentes, preguiçosos, jamais seria uma mão de obra fácil para tanta riqueza...
 Melhor mesmo trazer gente ignorante, sem alma; corria solto o boato que isso era confirmado pelo o Papa... Acostumados ao trabalho, quase sem custo, comprados nas feiras, valiam menos que animais; comiam o que sobrava das fartas mesas dos brancos, não precisavam de nenhuma educação...  
Porém, um grito mudo de liberdade perdido pela pobre gente, reuniu pouco a pouco, os que conseguiram fugir do holocausto colonial. Não aceitavam o cristianismo e se concentravam em locais de difícil acesso. Escondidos nas matas, selvas, morros, seus núcleos formavam aldeias, nos chamados “quilombos” em todas as regiões do Brasil. A economia era de subsistência. 
 Escapando também dos engenhos de açúcar de Pernambuco, em 1600, os negros se juntaram em Palmares - terra das palmeiras - por quase 100 anos. Quilombo dos Palmares reunia escravos fujões, brancos pobres, índios e mestiços, com vinte a trinta mil pessoas... Precisava ser aniquilado com urgência! Portugueses expulsaram com facilidade invasores holandeses do Nordeste em 1654, mas não conseguiram prender os negros fugitivos...
No meio dos rebeldes, descendente de guerreiros angolanos, em 1655, correndo nas veias a genética da resistência, nasceu seu mais expressivo representante: Zumbi – a força do espírito presente – reunia energia, coragem e inteligência de dirigente militar.
Ainda garoto foi preso por soldados em perseguição aos quilombos e entregue aos padres. Aprendeu com facilidade línguas, mas não conseguiu trair suas origens: fugiu com 15 anos de idade e voltou aos Palmares. Foi o mais poderoso líder da resistência escrava.
Coube a um bandeirante paulista, Domingos Jorge Velho, o trabalho inglório de juntar nove mil homens, armados com canhões e dominar, depois de quase cem anos, a rebeldia negra dos quilombos. Zumbi é morto em 20 de novembro de 1695, e o gemido escravo voltava com força, mas mudo faminto, sufocado, reprimido, dominado, triste...
E assim milhares de navios escravos abasteciam as prósperas fazendas brasileiras. Trabalhavam de sol a sol, comiam pouco e rendiam muito a custo zero... A colônia era  tranquila produtora de café e cana-de-açúcar para o mundo, até que de repente, Napoleão Bonaparte muda toda esta história... Põe a família Real portuguesa a correr e D. João VI, em 1808, chega fugido pra colônia com toda a nobreza a bordo.
O Brasil nunca mais seria o mesmo. Distribuição de títulos de condes, barões, duques, marqueses aos ricos produtores que se multiplicavam, enchiam os cofres da Coroa em troca de títulos nobres. Mas tudo isso exigia mais escravos, baratos, fortes, sem custo...
A chegada da família Real ao Brasil encontrava um clima de prosperidade no campo, de séculos de confortável aceitação escrava. Porém aos poucos, fervia o espírito abolicionista no mundo; a maçonaria brasileira foi a representante mais combativa da exploração negra.
Entregue aos cuidados da integridade moral do paulista José Bonifácio de Andrade e Silva, D. Pedro II atinge a maioridade física, emocional e humanista, com as sementes bem plantadas do ideal libertador. À sua filha, Princesa Isabel coube a assinatura em maio de 1888 da Lei Áurea, com a abolição total da escravatura brasileira.
Entretanto a libertação para muitos passou a ser um grande problema: analfabetos, sem nenhum trabalho, com pouca comida, sem condições de competir em nenhum mercado de trabalho. Para onde ir?
Em um recente anti-herói romanceado criou-se Macunaíma, preto retinto, filho de índio, rebelde, que representava o povo brasileiro; mergulhava a dupla preguiça estampada nas profundezas amazônicas; critica o autor, a miscigenação étnica (raças), religiosa (catolicismo, candomblé) e cultural. Em metamorfoses constantes, o índio negro vira animais e enfim se torna branco... Um culto ao racismo e à necessária eugenia brasileira...  
O preconceito da nossa história esqueceu-se de sua raiz e chegou a trocar a cor da pele de heróis negros nacionais como Aleijadinho e Machado de Assis; líderes pretos em todas as áreas foram silenciados e por muito tempo esquecidos. Somente em janeiro de 2003 foi criado oficialmente no Brasil o Dia da Consciência Negra, um resgate da cultura ofuscada.
Mas Zumbi ressurge do Quilombo dos Palmares, no Dia da Consciência Negra, revivido em 20 de novembro, quando seu corpo foi abatido. Tal qual a lenda que o imortalizaria, deixando seu código genético da herança da cor e resistência... Coube ao pintor alemão Rugendas retratar, nos desenhos a bico-de–pena, as cenas do preto oprimido no cotidiano colonial...
Dos sons abafados dos navios negreiros renascem expressões na música de Pixinguinha, Clementina de Jesus e Jamelão... Das letras proibidas do alfabeto misturam-se a hiperpigmentação da pele com a imortalidade literária de Ernesto Carneiro Ribeiro e de Machado de Assis... Das negras queixas reprimidas, ressurge a informação jornalística de Lima Barreto, Cruz e Sousa...
Dos abalos emocionais sofridos no holocausto, o psiquiatra negro Juliano Moreira interpreta a dor psíquica... Do corpo judiado, sem direito a descanso, renasce Pelé, o atleta do século... Semelhante às limitações físicas impostas aos escravos rebeldes, Aleijadinho, cor que a história esqueceu-se de registrar, modela em silêncio obras-patrimônio da Humanidade...   
Zumbi a força do espírito presente- tido pelo Quilombo de Palmares, como eterno e imortal, renasce como Fênix, não das cinzas, mas das sofridas galeras africanas, lembrado no Dia da Consciência Negra pela sua força, coragem, imortalidade e nobreza de seus descendentes.    

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