Outono de
1964. Cidade que vive dias muito quentes no verão, discreto frio no inverno, Porto
Alegre naquele mês acompanhava pelas ondas do rádio o calor das decisões
políticas. O ambiente era tenso, as emissoras locais retransmitiam a agitação e
insegurança reinantes.
A renúncia
inesperada do presidente Jânio Quadros deu margem para que seu vice João
Goulart fizesse uma política de aproximação com países comunistas, gerando uma
intranquilidade em todo o país. Já faziam duas décadas, mas ainda persistia o medo da ameaça à paz mundial, mesmo com a gloriosa vitória pelos
aliados liderados por Churchill. Familiares gaúchos de expressão queriam ser os
herdeiros políticos do inigualável estadista Getúlio Vargas. Posições populistas
confundiam a imprensa e o povo e inquietavam as forças armadas.
Ocupando uma
brecha nesta história, estávamos convivendo, ao lado do olho do furacão. Desde
os 15 anos de idade, nossos pais encaminhavam os filhos para estudar na
elegante capital gaúcha, cidade que vivia e respirava cultura, fonte de
inspiração para os lageanos que desde 1767, criaram fortes raízes com seu
convívio, abraçando sempre suas causas sociais e de liberdade.
Nada a ver com
o litoral do estado, a Serra Catarinense nesta época adotava Porto Alegre e
seus hábitos como cidade modelo em todos os aspectos socioculturais. Talvez
fosse pelos reflexos deixados pelos bandeirantes paulistas, fundadores da nossa
Lages, que encarregaram seus descendentes de defender as terras regionais, com
todas as armas disponíveis da escalada dos espanhóis subindo pelo Prata; ao
mesmo tempo se mesclavam com os fiéis brasileiros dos pampas.
Vizinho do governador Leonel Brizola, na rua
Tobias da Silva, acompanhávamos a descida ocasional do helicóptero do governo
estadual nos jardins de sua mansão. Preparando-nos para ingresso no curso de
Medicina e com as aulas canceladas, o ambiente exalava muita inquietação e tentamos
um retorno para Lages. Nossa curta viagem terminou em Caxias do Sul, pois as
estradas bloqueadas impediam o trânsito para Santa Catarina; as divisões do
Exército e não o povo eram contrárias e comandadas por generais de posições
ameaçadoras.
O golpe
militar ganhou força e o bairro Moinhos de Vento, onde estava a casa do
governador, foco das atenções, foi tomado pelo exército. A entrada naquela rua
foi um parto. Não carregávamos mais que uma pequena maleta, mas o bloqueio era
total. Passamos por um completo exame pessoal e da bagagem, só comparável à
tentativa de entrada de terroristas nos EUA. Finalmente, convencidos que se
tratava de um simples morador da rua, nossa passagem foi permitida.
Continuando o relato
da história brasileira, mais uma vez ocorreu uma transição sem maiores
incidentes. Vitorioso, o golpe militar, Brizola teve sua moradia invadida e
logo após a imprensa divulgava que encontrara três televisores na residência,
um luxo na época, hoje presente em qualquer casa de classe média... as
complicações viriam depois, como é do conhecimento dos sucessivos registros. Reforçada
pela mídia, o “perigo comunista” estava aparentemente afastado do Brasil, e as
instituições progressivamente voltavam ao normal, bem como nossas aulas,
realizando o transcurso tranquilo pelos bondes até o Colégio Rosário.
Logo após sua
posse, Marechal Castelo Branco, um dos líderes do movimento golpista e eleito
pelo Congresso como Presidente do Brasil, voltava a Porto Alegre, onde tinha
sido aluno do Colégio Militar. Só que desta vez o retorno foi apoteótico;
desfile em carro aberto, com direito à faixa presidencial, descia a Rua da Praia,
no Centro, como herói nacional, com uma chuva inédita de papéis picados
lançados dos prédios; uma aglomeração ímpar de populares aclamava o “libertador
da pátria”, no mesmo cenário que anos depois, escapávamos às pressas, correndo
da cavalaria que atirava indiscriminadamente bombas de gás lacrimogêneo nos
estudantes e na população que ousava discordar das imposições militares.
As intenções
de Castelo Branco pareciam boas... historiadores relatam que ele gostaria de entregar
o poder ao povo, mas misteriosamente morreu em acidente de helicóptero logo
após seu mandato... a sequência teve episódios desastrosos, uma continuidade de
ditadores e duas décadas de amarga inquietude.
Marcado por
perseguições estudantis, culturais e políticas em todos os ambientes a nível
nacional, quem se propusesse exclusivamente a estudar, tinha amplo acesso a
todos os ambientes de ensino técnico, porém apolítico. Assim, concluímos o que
mais desejávamos na vida, o curso de Medicina na “Faculdade da Santa Casa” de
Porto Alegre, em 1970.
Ditadura
militar no auge, porém caminho aberto ao estudo médico, a vida seguia no Brasil
com desníveis sociais imperdoáveis, os maiores índices de mortalidade infantil
no mundo, miséria somente comparada hoje a países africanos... no meio de todo
esse caos social, o país convivia com dois padrões de atendimento médico. Um
para os favorecidos seguia o modelo americano, o outro se arrastava em
desespero no atendimento dos esquecidos de qualquer privilégio.
Politicamente,
um capítulo a parte, a nação seguia seu destino, semelhante às demais latino
americanas, com inflação assustadora, miséria, atos institucionais, trocas de
moedas, planos econômicos, controle de imprensa; tímidos sopros de liberdade só
começaram a surgir depois de uma década. Os padrões nacionais de saúde e
educação atingiram progressivamente ganhos mais significativos, porém estamos
ainda longe de equiparar o padrão econômico da nação com os reais níveis
sociais de nosso povo.
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