quarta-feira, 20 de março de 2013

Pequeno incidente em uma história real




Outono de 1964. Cidade que vive dias muito quentes no verão, discreto frio no inverno, Porto Alegre naquele mês acompanhava pelas ondas do rádio o calor das decisões políticas. O ambiente era tenso, as emissoras locais retransmitiam a agitação e insegurança reinantes.

A renúncia inesperada do presidente Jânio Quadros deu margem para que seu vice João Goulart fizesse uma política de aproximação com países comunistas, gerando uma intranquilidade em todo o país. Já faziam duas décadas, mas  ainda persistia o medo da ameaça à paz  mundial, mesmo com a gloriosa vitória pelos aliados liderados por Churchill. Familiares gaúchos de expressão queriam ser os herdeiros políticos do inigualável estadista Getúlio Vargas. Posições populistas confundiam a imprensa e o povo e inquietavam as forças armadas.

Ocupando uma brecha nesta história, estávamos convivendo, ao lado do olho do furacão. Desde os 15 anos de idade, nossos pais encaminhavam os filhos para estudar na elegante capital gaúcha, cidade que vivia e respirava cultura, fonte de inspiração para os lageanos que desde 1767, criaram fortes raízes com seu convívio, abraçando sempre suas causas sociais e de liberdade.

Nada a ver com o litoral do estado, a Serra Catarinense nesta época adotava Porto Alegre e seus hábitos como cidade modelo em todos os aspectos socioculturais. Talvez fosse pelos reflexos deixados pelos bandeirantes paulistas, fundadores da nossa Lages, que encarregaram seus descendentes de defender as terras regionais, com todas as armas disponíveis da escalada dos espanhóis subindo pelo Prata; ao mesmo tempo se mesclavam com os fiéis brasileiros dos pampas.   

 Vizinho do governador Leonel Brizola, na rua Tobias da Silva, acompanhávamos a descida ocasional do helicóptero do governo estadual nos jardins de sua mansão. Preparando-nos para ingresso no curso de Medicina e com as aulas canceladas, o ambiente exalava muita inquietação e tentamos um retorno para Lages. Nossa curta viagem terminou em Caxias do Sul, pois as estradas bloqueadas impediam o trânsito para Santa Catarina; as divisões do Exército e não o povo eram contrárias e comandadas por generais de posições ameaçadoras.

O golpe militar ganhou força e o bairro Moinhos de Vento, onde estava a casa do governador, foco das atenções, foi tomado pelo exército. A entrada naquela rua foi um parto. Não carregávamos mais que uma pequena maleta, mas o bloqueio era total. Passamos por um completo exame pessoal e da bagagem, só comparável à tentativa de entrada de terroristas nos EUA. Finalmente, convencidos que se tratava de um simples morador da rua, nossa passagem foi permitida.

Continuando o relato da história brasileira, mais uma vez ocorreu uma transição sem maiores incidentes. Vitorioso, o golpe militar, Brizola teve sua moradia invadida e logo após a imprensa divulgava que encontrara três televisores na residência, um luxo na época, hoje presente em qualquer casa de classe média... as complicações viriam depois, como é do conhecimento dos sucessivos registros. Reforçada pela mídia, o “perigo comunista” estava aparentemente afastado do Brasil, e as instituições progressivamente voltavam ao normal, bem como nossas aulas, realizando o transcurso tranquilo pelos bondes até o Colégio Rosário.

Logo após sua posse, Marechal Castelo Branco, um dos líderes do movimento golpista e eleito pelo Congresso como Presidente do Brasil, voltava a Porto Alegre, onde tinha sido aluno do Colégio Militar. Só que desta vez o retorno foi apoteótico; desfile em carro aberto, com direito à faixa presidencial, descia a Rua da Praia, no Centro, como herói nacional, com uma chuva inédita de papéis picados lançados dos prédios; uma aglomeração ímpar de populares aclamava o “libertador da pátria”, no mesmo cenário que anos depois, escapávamos às pressas, correndo da cavalaria que atirava indiscriminadamente bombas de gás lacrimogêneo nos estudantes e na população que ousava discordar das imposições militares.

As intenções de Castelo Branco pareciam boas... historiadores relatam que ele gostaria de entregar o poder ao povo, mas misteriosamente morreu em acidente de helicóptero logo após seu mandato... a sequência teve episódios desastrosos, uma continuidade de ditadores e duas décadas de amarga inquietude.

Marcado por perseguições estudantis, culturais e políticas em todos os ambientes a nível nacional, quem se propusesse exclusivamente a estudar, tinha amplo acesso a todos os ambientes de ensino técnico, porém apolítico. Assim, concluímos o que mais desejávamos na vida, o curso de Medicina na “Faculdade da Santa Casa” de Porto Alegre, em 1970.

Ditadura militar no auge, porém caminho aberto ao estudo médico, a vida seguia no Brasil com desníveis sociais imperdoáveis, os maiores índices de mortalidade infantil no mundo, miséria somente comparada hoje a países africanos... no meio de todo esse caos social, o país convivia com dois padrões de atendimento médico. Um para os favorecidos seguia o modelo americano, o outro se arrastava em desespero no atendimento dos esquecidos de qualquer privilégio.

Politicamente, um capítulo a parte, a nação seguia seu destino, semelhante às demais latino americanas, com inflação assustadora, miséria, atos institucionais, trocas de moedas, planos econômicos, controle de imprensa; tímidos sopros de liberdade só começaram a surgir depois de uma década. Os padrões nacionais de saúde e educação atingiram progressivamente ganhos mais significativos, porém estamos ainda longe de equiparar o padrão econômico da nação com os reais níveis sociais de nosso povo.        

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