Os acordes de Bach, vindos da
floresta, eram ouvidos dentro do navio no interior do território africano; se
tornavam mais audíveis com a proximidade. Quem teria aquela diferenciada preferência
num meio de cultura tão diferente do
europeu?
Considerado na época, primeiras
décadas de 1900, o maior intérprete de Bach na Europa, Albert Schweitzer ficava
cada vez mais fascinado pela exímia execução musical. E a sintonia se tornava
mais viva com a aproximação.
Parou a embarcação e Albert
acompanhado por um grupo de nativos, embrenhou-se na selva, em direção à
expressiva manifestação. Era orientado pela diferenciada e cada vez mais intensa
musicalidade.
Chegando ao local, um simples
casebre, a música cessou, não constatando nenhuma origem do som. Dentro da choupana,
um homem gemia de dor. Examinado pelo médico Schweitzer, constatou uma hérnia
inguinal estrangulada e imediatamente foi conduzido pro navio-hospital para
tratamento cirúrgico.
O médico alemão, também filósofo,
músico, professor de Teologia, Albert Schweitzer, interpretou como um chamado
divino à urgência no meio da selva. A música seria o único modo de atração à
necessidade, num ambiente tão hostil.
Schweitzer prestou muitos anos de trabalho
voluntário no Congo Francês, o Gabão, na África, construiu com a ajuda dos
nativos, um hospital na cidade de Lambaréné, atendendo mais de 40 necessitados
por dia. Foi laureado em 1952 com o Prêmio Nobel da Paz, e o dinheiro revertido
em uma nova instituição hospitalar.
Porém, com toda uma história de
dedicação, foi criticado por não melhorar a qualidade de vida dos africanos, preocupando-se
“somente com assistência médica”. O
trabalho foi visto por alguns como mais um desempenho assistencialista.
O assistencialismo é considerado uma ação social com caráter
filantrópico; geralmente se desenvolve em benefício de necessitados em comunidades
carentes, por organizações hospitalares ou religiosas, através da doação de
medicamentos, alimentos, assistência médica, oferecidos por pessoas ou instituições
civis, entretanto, sem transformar a realidade comunitária.
Não incluiremos no texto, a visão
do caráter assistencialista e eleitoreira
dos cartões vale tudo no Brasil. Não se discute a vantagem da distribuição emergencial às famílias
carentes, mas a doação contínua
desestimula o desenvolvimento social.
Para a maioria das religiões, a
tônica da caridade se limita à
atividade de atenção material, porém, sem conotação de envolvimento na cultura do favorecido. Em nosso país,
tivemos muitas personalidades dedicadas ao voluntariado.
Entre os espíritas, é muito
divulgado o trabalho social de Bezerra de Menezes, médico cearense
nascido em 1831. Político, eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, membro
da Academia Imperial de Medicina, foi escritor em vários jornais da época.
Adepto do espiritismo após o
lançamento do “Livro dos Espíritos” no
Brasil em 1875, iniciou um trabalho de dedicação a carentes, com consultório
voltado a clientes que ninguém desejava: os que não dispunham de condições para
pagar consultas e medicamentos. Esgotados os recursos materiais, chegou a doar
o anel de formatura para compra de remédios dos protegidos.
Outro grande exemplo de trabalho
social no Brasill foi da Irmã Dulce.
Nascida em 1914, em Salvador, na Bahia, começou aos 13 anos de idade a vocação filantrópica, atendendo famílias
pobres na própria casa dos pais. Formou-se professora e foi ordenada freira aos
20 anos de idade. Dedicou-se principalmente aos operários e doentes recolhidos
nas ruas.
Sem local adequado para o
atendimento, chegou a improvisar instalação de albergue no galinheiro do Convento Santo Antônio. Deu origem,
assim, à criação do Hospital Santo
Antônio, um complexo médico, educacional e social que funciona até hoje,
voltado para necessitados.
Morreu em 1992, com 77 anos de
idade e 64 de dedicação assistencial e religiosa. Beatitificada, a comunidade
católica, aguarda ansiosa, a canonização. Os seguidores do “Anjo Bom da Bahia”, como é conhecida, não a vêem só como exemplo
de assistencialismo social; mas de
caridade evangélica, salvadora de almas, conforme a visão religiosa católica.
Entre outros, um destaque
especial também ao trabalho de Zilda Arns. Médica, pediatra e
sanitarista, nascida em Santa Catarina; quando estudante, já desenvolvia
trabalho voluntário no Hospital Infantil
Cesar Pernetta. A dedicação no atendimento médico conquistou admiradores e,
em 1980, foi convidada a coordenar uma campanha de vacinação contra a
poliomiete, tornando-se referência no próprio Ministério da Saúde.
Fundou em 1983, a Pastoral da Criança no interior do
Paraná, atendendo atualmente mais de 4000 municípios no país. A atenção,
especialmente focada em comunidades pobres, começa nas gestantes, identificando
situações de risco, orientações quanto à vacinação e aleitamento materno.
Após o parto, milhares de
voluntários acompanham o desenvolvimento das crianças, com tabelas de peso e
altura, detectando desvios de nutrição. Umas das principais iniciativas da
instituição é o incentivo ao uso precoce do soro caseiro nas diarréias,
evitando a desidratação e internamentos hospitalares.
O trabalho estendeu-se além do
Brasil, para mais 19 países. Porém, o trágico terremoto do Haiti, em 2010, que
lhe abateu a vida no trabalho de expansão, não impediu a continuidade assistencial da entidade.
Os exemplos anônimos se
multiplicam aos milhares em todos os cantos do mundo, seja por motivos
religiosos ou se tratando de vocação individual. Inúmeros têm características
exclusivamente assistencialistas, sem
nenhum envolvimento cultural junto
aos assistidos.
Cultura
de um povo é tudo o que ele produz, que não é da natureza, compreendendo a forma
de agir e pensar, transmitida às gerações
seguintes. Cada cultura tem os
próprios valores e deve ser
respeitada sem preconceitos, ou seja,
sem atitudes discriminatórias, que
comparam diferentes culturas.
A atitude oposta ao preconceito,
denominada relatividade cultural,
compreende respeito, estudo da cultura
envolvida na pesquisa, no verdadeiro contexto individual, social e histórico. Dalai Lama no conceito de compaixão, torna bem clara a noção de relatividade cultural.
Compaixão é senso de compreensão
e não pena do assistido. Nos leva a
ver no outro, o mesmo direito que
temos à felicidade. Baseia-se na compreensão
da igualdade de todos os seres e culturas.
Porém, formas perversas de sociabilidade, produzidas
pela globalização, foram vividas com mais intensidade após a Segunda Guerra
Mundial. Na realidade, as raízes iniciaram na Rota da Seda e também no Império
Romano; da mesma forma, nas descobertas de novos mercados por Portugal e
Espanha nos séculos XIV e XV e na Revolução Industrial da Inglaterra no século
XVIII.
Todavia, entre tantas vantagens
da moderna comunicação imediata da Aldeia
Global, no conceito de Mc Luhan,
acentuou-se um lado social pernicioso
de “salve-se quem puder”. A competitividade se tornou nova lei, as
pessoas se afastaram, com distanciamento na aquisição de valores em grupo e da solidariedade.
Porém,
Albert Schweitzer, Bezerra de Menezes,
Zilda Arns, Irmã Dulce, Dalai Lama e tantos “Anjos do Bem” anônimos, mostraram
um lado humano de muita superioridade moral, que faz acreditar no potencial do homo sapiens.
Prestaram assistência social, chamada ou não de assistencialismo, mas souberam compreender e respeitar a relatividade cultural, sem preconceitos nem etnocentrismo, embuídos do conceito de compaixão de Dalai Lama. Sem pena, mas com respeito e doação, valorizando o contexto individual, social e histórico das comunidades assistidas.
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