segunda-feira, 2 de junho de 2014

Trabalho Social, Assistencialismo e Relatividade Cultural




Os acordes de Bach, vindos da floresta, eram ouvidos dentro do navio no interior do território africano; se tornavam mais audíveis com a proximidade. Quem teria aquela diferenciada preferência num meio de cultura tão diferente do europeu?

Considerado na época, primeiras décadas de 1900, o maior intérprete de Bach na Europa, Albert Schweitzer ficava cada vez mais fascinado pela exímia execução musical. E a sintonia se tornava mais viva com a aproximação.

Parou a embarcação e Albert acompanhado por um grupo de nativos, embrenhou-se na selva, em direção à expressiva manifestação. Era orientado pela diferenciada e cada vez mais intensa musicalidade.

Chegando ao local, um simples casebre, a música cessou, não constatando nenhuma origem do som. Dentro da choupana, um homem gemia de dor. Examinado pelo médico Schweitzer, constatou uma hérnia inguinal estrangulada e imediatamente foi conduzido pro navio-hospital para tratamento cirúrgico.

O médico alemão, também filósofo, músico, professor de Teologia, Albert Schweitzer, interpretou como um chamado divino à urgência no meio da selva. A música seria o único modo de atração à necessidade, num ambiente tão hostil.

 Schweitzer prestou muitos anos de trabalho voluntário no Congo Francês, o Gabão, na África, construiu com a ajuda dos nativos, um hospital na cidade de Lambaréné, atendendo mais de 40 necessitados por dia. Foi laureado em 1952 com o Prêmio Nobel da Paz, e o dinheiro revertido em uma nova instituição hospitalar.

Porém, com toda uma história de dedicação, foi criticado por não melhorar a qualidade de vida dos africanos, preocupando-se “somente com assistência médica”. O trabalho foi visto por alguns como mais um desempenho assistencialista.

O assistencialismo é considerado uma ação social com caráter filantrópico; geralmente se desenvolve em benefício de necessitados em comunidades carentes, por organizações hospitalares ou religiosas, através da doação de medicamentos, alimentos, assistência médica, oferecidos por pessoas ou instituições civis, entretanto, sem transformar a realidade comunitária.

Não incluiremos no texto, a visão do caráter assistencialista e eleitoreira dos cartões vale tudo no Brasil. Não se discute a vantagem da distribuição emergencial às famílias carentes, mas a doação contínua desestimula o desenvolvimento social.  

Para a maioria das religiões, a tônica da caridade se limita à atividade de atenção material, porém, sem conotação de envolvimento na cultura do favorecido. Em nosso país, tivemos muitas personalidades dedicadas ao voluntariado.

Entre os espíritas, é muito divulgado o trabalho social de Bezerra de Menezes, médico cearense nascido em 1831. Político, eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, membro da Academia Imperial de Medicina, foi escritor em vários jornais da época.

Adepto do espiritismo após o lançamento do “Livro dos Espíritos” no Brasil em 1875, iniciou um trabalho de dedicação a carentes, com consultório voltado a clientes que ninguém desejava: os que não dispunham de condições para pagar consultas e medicamentos. Esgotados os recursos materiais, chegou a doar o anel de formatura para compra de remédios dos protegidos.   

Outro grande exemplo de trabalho social no Brasill foi da Irmã Dulce. Nascida em 1914, em Salvador, na Bahia, começou aos 13 anos de idade a vocação filantrópica, atendendo famílias pobres na própria casa dos pais. Formou-se professora e foi ordenada freira aos 20 anos de idade. Dedicou-se principalmente aos operários e doentes recolhidos nas ruas.

Sem local adequado para o atendimento, chegou a improvisar instalação de albergue no galinheiro do Convento Santo Antônio. Deu origem, assim, à criação do Hospital Santo Antônio, um complexo médico, educacional e social que funciona até hoje, voltado para necessitados.

Morreu em 1992, com 77 anos de idade e 64 de dedicação assistencial e religiosa. Beatitificada, a comunidade católica, aguarda ansiosa, a canonização. Os seguidores do “Anjo Bom da Bahia”, como é conhecida, não a vêem só como exemplo de assistencialismo social;  mas de caridade evangélica, salvadora de almas, conforme a visão religiosa católica.

Entre outros, um destaque especial também ao trabalho de Zilda Arns. Médica, pediatra e sanitarista, nascida em Santa Catarina; quando estudante, já desenvolvia trabalho voluntário no Hospital Infantil Cesar Pernetta. A dedicação no atendimento médico conquistou admiradores e, em 1980, foi convidada a coordenar uma campanha de vacinação contra a poliomiete, tornando-se referência no próprio Ministério da Saúde.

Fundou em 1983, a Pastoral da Criança no interior do Paraná, atendendo atualmente mais de 4000 municípios no país. A atenção, especialmente focada em comunidades pobres, começa nas gestantes, identificando situações de risco, orientações quanto à vacinação e aleitamento materno.   

Após o parto, milhares de voluntários acompanham o desenvolvimento das crianças, com tabelas de peso e altura, detectando desvios de nutrição. Umas das principais iniciativas da instituição é o incentivo ao uso precoce do soro caseiro nas diarréias, evitando a desidratação e internamentos hospitalares.

O trabalho estendeu-se além do Brasil, para mais 19 países. Porém, o trágico terremoto do Haiti, em 2010, que lhe abateu a vida no trabalho de expansão, não impediu a continuidade assistencial da entidade.

Os exemplos anônimos se multiplicam aos milhares em todos os cantos do mundo, seja por motivos religiosos ou se tratando de vocação individual. Inúmeros têm características exclusivamente assistencialistas, sem nenhum envolvimento cultural junto aos assistidos.

 Cultura de um povo é tudo o que ele produz, que não é da natureza, compreendendo a forma de agir e pensar, transmitida às gerações seguintes. Cada cultura tem os próprios valores e deve ser respeitada sem preconceitos, ou seja, sem atitudes discriminatórias, que comparam diferentes culturas.

A atitude oposta ao preconceito, denominada relatividade cultural, compreende respeito, estudo da cultura envolvida na pesquisa, no verdadeiro contexto individual, social e histórico. Dalai Lama no conceito de compaixão, torna bem clara a noção de relatividade cultural.

Compaixão é senso de compreensão e não pena do assistido. Nos leva a ver no outro, o mesmo direito que temos à felicidade. Baseia-se na compreensão da igualdade de todos os seres e culturas.

Porém, formas perversas de sociabilidade, produzidas pela globalização, foram vividas com mais intensidade após a Segunda Guerra Mundial. Na realidade, as raízes iniciaram na Rota da Seda e também no Império Romano; da mesma forma, nas descobertas de novos mercados por Portugal e Espanha nos séculos XIV e XV e na Revolução Industrial da Inglaterra no século XVIII.

Todavia, entre tantas vantagens da moderna comunicação imediata da Aldeia Global, no conceito de Mc Luhan, acentuou-se um lado social pernicioso de “salve-se quem puder”. A competitividade se tornou nova lei, as pessoas se afastaram, com distanciamento na aquisição de valores em grupo e da solidariedade.

   Porém, Albert Schweitzer, Bezerra de Menezes, Zilda Arns, Irmã Dulce, Dalai Lama e tantos “Anjos do Bem” anônimos, mostraram um lado humano de muita superioridade moral, que faz acreditar no potencial do homo sapiens.

Prestaram assistência social, chamada ou não de assistencialismo, mas souberam compreender e respeitar a relatividade cultural, sem preconceitos nem etnocentrismo, embuídos do conceito de compaixão de Dalai Lama. Sem pena, mas com respeito e doação, valorizando o contexto individual, social e histórico das comunidades assistidas.     

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