Mortos-vivos aglomerados na
embarcação-presídio. Fome, sede, dor muda, o mar sepultava os abatidos pelas
doenças. Obrigações severas matavam os enfraquecidos. Os mais fortes, quase
cadáveres, resistiam sem queixas... Corria o ano de 1549. Os primeiros navios
da vergonha chegavam ao solo brasileiro... Ondas engolindo sofrimento,
submissão cega, aceitação imposta, rebeldia oprimida...
A rica colônia seduzia o Velho Mundo. “Em se
plantando nela tudo dá”, na carta de Pero Vaz de Caminha, os primeiros escritos
sobre a abençoada terra descoberta. Café, cana de açúcar, algodão, frutas
exóticas, pau brasil, ouro, enfim tudo à vontade.
Mas precisava de muita gente para explorar o
que pudesse e sem custos. Os índios, ah os índios! Nunca! Mesmo os dóceis, que viviam
da caça e pesca insolentes, preguiçosos, jamais seria uma mão de obra fácil para
tanta riqueza...
Melhor mesmo trazer gente ignorante, sem alma;
corria solto o boato que isso era confirmado pelo o Papa... Acostumados ao
trabalho, quase sem custo, comprados nas feiras, valiam menos que animais;
comiam o que sobrava das fartas mesas dos brancos, não precisavam de nenhuma
educação...
Porém, um grito mudo de liberdade
perdido pela pobre gente, reuniu pouco a pouco, os que conseguiram fugir do
holocausto colonial. Não aceitavam o cristianismo e se concentravam em locais
de difícil acesso. Escondidos nas matas, selvas, morros, seus núcleos formavam
aldeias, nos chamados “quilombos” em todas as regiões do Brasil. A economia era
de subsistência.
Escapando também dos engenhos de açúcar de
Pernambuco, em 1600, os negros se juntaram em Palmares - terra das palmeiras -
por quase 100 anos. Quilombo dos Palmares reunia escravos fujões, brancos
pobres, índios e mestiços, com vinte a trinta mil pessoas... Precisava ser
aniquilado com urgência! Portugueses expulsaram com facilidade invasores
holandeses do Nordeste em 1654, mas não conseguiram prender os negros
fugitivos...
No meio dos rebeldes, descendente
de guerreiros angolanos, em 1655, correndo nas veias a genética da resistência,
nasceu seu mais expressivo representante: Zumbi – a força do espírito presente
– reunia energia, coragem e inteligência de dirigente militar.
Ainda garoto foi preso por
soldados em perseguição aos quilombos e entregue aos padres. Aprendeu com
facilidade línguas, mas não conseguiu trair suas origens: fugiu com 15 anos de
idade e voltou aos Palmares. Foi o mais poderoso líder da resistência escrava.
Coube a um bandeirante paulista,
Domingos Jorge Velho, o trabalho inglório de juntar nove mil homens, armados
com canhões e dominar, depois de quase cem anos, a rebeldia negra dos quilombos.
Zumbi é morto em 20 de novembro de 1695, e o gemido escravo voltava com força,
mas mudo faminto, sufocado, reprimido, dominado, triste...
E assim milhares de navios
escravos abasteciam as prósperas fazendas brasileiras. Trabalhavam de sol a
sol, comiam pouco e rendiam muito a custo zero... A colônia era tranquila produtora de café e cana-de-açúcar
para o mundo, até que de repente, Napoleão Bonaparte muda toda esta história...
Põe a família Real portuguesa a correr e D. João VI, em 1808, chega fugido pra
colônia com toda a nobreza a bordo.
O Brasil nunca mais seria o mesmo.
Distribuição de títulos de condes, barões, duques, marqueses aos ricos produtores
que se multiplicavam, enchiam os cofres da Coroa em troca de títulos nobres.
Mas tudo isso exigia mais escravos, baratos, fortes, sem custo...
A chegada da família Real ao
Brasil encontrava um clima de prosperidade no campo, de séculos de confortável
aceitação escrava. Porém aos poucos, fervia o espírito abolicionista no mundo;
a maçonaria brasileira foi a representante mais combativa da exploração negra.
Entregue aos cuidados da
integridade moral do paulista José Bonifácio de Andrade e Silva, D. Pedro II
atinge a maioridade física, emocional e humanista, com as sementes bem
plantadas do ideal libertador. À sua filha, Princesa Isabel coube a assinatura em
maio de 1888 da Lei Áurea, com a abolição total da escravatura brasileira.
Entretanto a libertação para
muitos passou a ser um grande problema: analfabetos, sem nenhum trabalho, com
pouca comida, sem condições de competir em nenhum mercado de trabalho. Para
onde ir?
Em um recente anti-herói
romanceado criou-se Macunaíma, preto retinto, filho de índio, rebelde, que
representava o povo brasileiro; mergulhava a dupla preguiça estampada nas
profundezas amazônicas; critica o autor, a miscigenação étnica (raças),
religiosa (catolicismo, candomblé) e cultural. Em metamorfoses constantes, o
índio negro vira animais e enfim se torna branco... Um culto ao racismo e à
necessária eugenia brasileira...
O preconceito da nossa história
esqueceu-se de sua raiz e chegou a trocar a cor da pele de heróis negros
nacionais como Aleijadinho e Machado de Assis; líderes pretos em todas as áreas
foram silenciados e por muito tempo esquecidos. Somente em janeiro de 2003 foi
criado oficialmente no Brasil o Dia da Consciência Negra, um resgate da cultura
ofuscada.
Mas Zumbi ressurge do Quilombo
dos Palmares, no Dia da Consciência Negra, revivido em 20 de novembro, quando
seu corpo foi abatido. Tal qual a lenda que o imortalizaria, deixando seu código
genético da herança da cor e resistência... Coube ao pintor alemão Rugendas
retratar, nos desenhos a bico-de–pena, as cenas do preto oprimido no cotidiano
colonial...
Dos sons abafados dos navios
negreiros renascem expressões na música de Pixinguinha, Clementina de Jesus e
Jamelão... Das letras proibidas do alfabeto misturam-se a hiperpigmentação da
pele com a imortalidade literária de Ernesto Carneiro Ribeiro e de Machado de
Assis... Das negras queixas reprimidas, ressurge a informação jornalística de
Lima Barreto, Cruz e Sousa...
Dos abalos emocionais sofridos no
holocausto, o psiquiatra negro Juliano Moreira interpreta a dor psíquica... Do
corpo judiado, sem direito a descanso, renasce Pelé, o atleta do século... Semelhante
às limitações físicas impostas aos escravos rebeldes, Aleijadinho, cor que a história
esqueceu-se de registrar, modela em silêncio obras-patrimônio da Humanidade...
Zumbi a força do espírito
presente- tido pelo Quilombo de Palmares, como eterno e imortal, renasce como
Fênix, não das cinzas, mas das sofridas galeras africanas, lembrado no Dia da Consciência
Negra pela sua força, coragem, imortalidade e nobreza de seus descendentes.